sexta-feira, 22 de abril de 2011

Saturação

Saturação

um conto de Junior Aragaki


Carlos Sergio abriu os olhos no escuro de seu quarto.
Olhou o relógio, 03:21, tinha que levantar as 06:45.
Virou para um lado, para o outro, tentou dormir
mas passou o resto da noite pensando na vida.
Uma bela vida, afinal era musico como sonhara
desde criança, e muito bem pago como acompanhante
de uma cantora pop brasileira.
Lembrou emocionado de como seu pai suou a camisa
para que ele se dedicasse em tempo integral
ao estudo musical. E foram anos de estudo, ainda que
Carlos Sergio tivesse a grande virtude de ter ouvido absoluto.
Ele era capaz de identificar uma pequena desafinada em
qualquer instrumento, incluindo a voz humana.
Chorou de saudades do pai, um ótimo violonista, que
morrera de um infarto fatal, as vésperas do Ano Novo,
enquanto Carlos Sergio fazia um curso de orquestração na Itália.
Não havia passagem para que chegasse a tempo do enterro, e
questionado por uma tia ao telefone, se deveriam embalsamar, congelar
o defunto para esperá-lo, Carlos Sergio responde:
- Meu pai era a pessoa mais quente que eu conhecia! E continuou:
- Seria um pecado fazer dele um picolé.
- Enterrem logo! Sentenciou enfatico.
Estava mergulhado nestas lembranças quando o rádio-relógio despertou
sintonizado numa estação de noticias.
Carlos Sergio fechou os olhos fingindo estar dormindo.
Terezinha sua esposa levantou, tinha que levar as crianças pra escola antes
de deixa-lo no aeroporto.
Deixou que ele dormisse mais um pouco. Minutos depois beijou-lhe as
faces gentilmente.
Carlos Sergio manteve os olhos fechados. Era uma ótima sensação ser acordado
aos beijinhos. Carlos Sergio abriu os olhos e disse:
- Não vou neste turne! Cansei destas musicas mediocres!
- Carlinhos, levanta logo que preciso levar as crianças e to atrasada!
Terezinha parou junto a porta: - To saindo Carlinhos, levanta logo que
você tem que estar no Aeroporto as 10:00 hs!
Carlos Sergio espreguiçou e disse:
- To falando sério. Pra mim Chega! Não trabalho mais com ela!
- Carlinhos to saindo! Levanta logo. Terezinha disse e saiu apressada.
40 minutos depois ela abre a porta do quarto e encontra Carlos Sergio deitado,
na mesma posição.
- Amor vocé vai perder o vôo! Terezinha puxa o cobertor, tentando
espulsa-lo da cama.
- Ja disse que não trabalho mais pra ela. Não dá mais! Esbravejou Carlos Sergio.
- Você ta falando sério? Terezinha estava ficando preocupada.
- Sérissimo! Agora me deixa em paz, preciso dormir.
Carlos Sergio trancou a porta do quarto, e se recusou a atender os telefones
do empresario, e da propria cantora.
Terezinha, pediu desculpas dizendo que Carlos Sergio estava passando mal, mas
que embarcaria no próximo vôo, pegou uma copia da chave e abriu a porta do
quarto.
- Levanta Carlos Sergio, você tem que cumprir suas responsabilidades!!!
Carlos Sergio levantou-se de um só pulo.
- Prefiro morrer! Disse enfático.
A mulher só o levou a sério, quando ele subiu na mureta da sacada do apartamento
no 11º andar, e ameaçou se jogar.
- Carlinhos meu amor, pelo amor de Deus, desce dai! Vem, me dá a mão! Pedia
Terezinha entre lágrimas.
Carlos Sergio pensou, baixou a cabeça e esticou os braços em direção da esposa.
No mesmo instante começa a tocar o grande hit da cantora no rádio-relógio.
Carlos Sergio desespera-se:
- Escuta isto, esta tocando esta merda num canal sério, num canal de noticias!
No dia seguinte, em vários jornais brilhava a noticia em primeira página......
" Maestro morto pela promiscuidade da música brasileira".




SP, 22 de abril de 2011 - Junior Aragaki

Um comentário:

André P. disse...

Porra, Junior, me lembrei de um amigo meu, percussionista. Filho de um percussionista bem famoso, que tocou/gravou com toda a nata da MPB nos anos 60,70. O filho dele, amigo meu? Tocando com dupla sertaneja famosa estouradaça e enchendo o bolso de dimdim. Mas triste como o Carlos Sergio.
Gostei do conto.
Grande abraço!
André Parlato
PS. se não aprovar o link abaixo, pode deletar, sem problema, OK?
Hotel Fazenda Minas Gerais