quarta-feira, 19 de agosto de 2009

206. Um conto de Junior Aragaki


206!

206. Numero inesquecivel para mim.
206 era a quantidade de blocos que formavam
a cela 3 da guarda norte do 39º Bimtz em Quitauna - São Paulo.
Eu ja estava naquela cela há 15 dias quando me dei conta de que a única coisa que eu tinha para matar o tempo era contar aqueles malditos blocos, e não fazia idéia de que
ficaria ali por mais 25 dias eternos.
E tudo isto por ter agredido um sargento. Um filho da puta de um sargento.
Quitauna, um dos maiores e mais bem preparados aquartelamentos do Brasil, e famosos pelos "ralos" submetidos aos seus recrutas.
Era o antigo 4º RI (Regimento de Infantaria) onde numa noite o glorioso Capitão Lamarca estacionou um caminhão, e levou todas as armas de uma Companhia para a Guerrilha.
Em 1989, 3 quartéis formavam o chamado Inferno Verde.
A esquerda o 2º GAAE (Grupo de Artilharia Anti-Aerea) e cá entre nós moleza total, afinal faziam seus treinos e acampamentos na praia. Hehehe Viva a Infantaria!!!
No meio o 39º BIMTz (Batalhão de Infantaria Motorizado, hoje Infantaria Leve)
E a direita o 4º BIB (Batalhão de Infantaria Blindada). Onde rolava o famoso "ralo" da boina preta, a marca registrada dos infantes blindados.
Eu servi no 39. 2ªa Companhia de Fuzileiros, a Guerreira. Infante Fuzileiro, aquele que quando o bicho pega se fode primeiro. O famoso "Pé-de-Poeira".
Como em todo quartel brasileiro, a iniciação no mundinho militar é algo entre uma tortura psicológica, e um filme de satiras militares estrelado pela dupla O Gordo e o Magro. Eu ja conhecia alguns dos caras que estavam servindo, e acabei sendo
designado como Soldadeante, um tipo de auxiliar de escritório. O primeiro mês no quartel era em regime de internato.
Chegávamos as segundas, e íamos embora as sextas.
De certa forma tive muita sorte por saber manejar algumas armas devido a minha infância passada na companhia de uma espingarda de chumbinho na fazenda de minha avó, que foi quem me ensinou a manusear e atirar com uma Winchester 22.
Eu era muito bom de mira, e esta facilidade me tornou um atirador de elite.
Logo nos primeiros exercicios de tiro com o Fuzil FAL de origem belga, me destaquei e tive as melhores notas da turma, o que fez o Capitão Gomes me convidar para integrar o Pelopes (Pelotão de Operações Especiais) das 2º Cia, e o Coronel Albuquerque Prado (Comandante de Infantaria) me convocou para fazer parte do time de atletas de tiro, que disputaria algumas competições naquele ano. Aceitei feliz, sem saber que aquela decisão me levaria a "ralar" o ano inteiro. Após o período de treino básico, e com as funções ja designadas dentro de cada pelotão, comecei a treinar tiro intensamente, em breve haveria um campeonato. Haviam varias modalidades de tiro militar, e eu treinava 3 tipos. Deitado, agachado, e de pé, sem apoio.
Naquela época a vida no quartel era uma maravilha para mim. Entrava em forma as 7 da manhã, e após a leitura das ordens do dia, ia para o estande de tiro do 4º Bib, e ficava o dia inteiro treinando.
Num destes dias o sargento da ronda, era o sargento Garcia. Só faltava o Zorro porque tonto tinha a vontade.
Ele tinha uma voz bem fina e se fazia de durão o tempo inteiro, e era muito engraçado ver ele gritando com sua vozinha soprano estridente.
Ele chegou em mim: - Raiser, seu bisonho, esta tua vida mole vai acabar logo, este negocio de ficar só atirando o dia inteiro ta no fim, ai quero ver você virando o zóio na guarda norte!!!!
Atirar com um fuzil em época de paz, é um privilégio para poucos no Brasil. Só quem já
apertou o gatilho de um FAL, sabe o que estou dizendo. Atirar custa caro, então a maioria dos militares tem um treinamento de tiro bem restrito. E eu ali, atirando a vontade, acabava por despertar a ira de alguns militares patenteados.
- Raiser, levanta seu merda. Eu estava agachado e com o alvo na mira, nestes momentos do tiro você precisa de toda a concentração do mundo, mas o arrombado do sargento continuava ali, me provocando:
- Raiser, ja disse, levanta e presta continencia!!! Agora!!!
Me levantei, fiquei em posição de sentido e levei a mão direita espalmada junto a fronte.
- Raiser seu mocorongo, olha só esta farda, que lixo, você é um lixo Raiser, qual é
o seu numero?
- 562. Respondi irritado. O filho da puta puxou o caderno de anotações e marcou meu
numero. Fiquei muito puto porque sabia que uma anotação daquelas podia me deixar
um fim de semana detido no quartel.
Voltei ao treino, e passados alguns minutos, eis que volta o sargento soprano para me
infernizar. Eu treinava tiro deitado, ele "sopranou" ao meu lado:
- Raiser de pé quando entrar um superior no recinto! Eu fiz que não era comigo e disparei 3 vezes contra o alvo.
- Raiser de pé, eu já disse! De pé seu arrombado! Ele me cutucou com o bico do coturno.
- Levanta agora soldado, isto é uma ordem. Disparei mais 3 vezes.
- Seu bizonho de merda, ta querendo me intimidar é? Berrou ele furioso. Eu novamente fiz que não era comigo e me concentrei no alvo novamente procurando calibrar minha pontaria.
- Vou te ensinar a respeitar um superior seu merda. Disse isto e me deu um chute
nas costelas. Não tive duvidas, joguei o FAL, me levantei e dei um soco na boca
do sargento. Ele cambaleou para trás, levando a mão ao coldre para sacar a pistola,
mas fui mais rápido e segurei sua mão torcendo-a para trás, enquanto o derrubava
com o joelho. Arranquei a beretta das mãos do sargento, joguei-a pra longe, e
comecei a soca-lo. Zorro e tonto aplaudiam sentados num canto.
Por ser um dos sargentos mais odiados no quartel, os outros soldados deixaram que eu desse uns bons socos nele, e demoraram alguns instantes para me tirarem de cima do sargento Garcia. Ele pegou meu fuzil e apontou para mim, tinha um olhar profundo e destravou a arma enquanto cuspia uma placa de sangue.
Gelei!! E fechei os olhos certos de que ele iria disparar. Abri os olhos a tempo de ver o tenente Bernaziel segurando o cano do fuzil e fazendo o sargento baixar a guarda.
Desci preso para a guarda norte, escoltado por 4 companheiros, que contrariados tinham
que fazer este serviço sujo. Dentro da minúscula cela me fizeram ficar nú, e me deram um short sem o cordão para amarrar, eles tiravam tudo, pois tinham medo de encontrarem algum preso enforcado, como os "acidentes" que sempre aconteciam no periodo da ditadura.
Quem tomava conta da guarda norte e dos presos era sempre um sargento que variava conforme a escala. Eu havia socado um sargento. E eles eram muito unidos.
Um pouco antes das 10 da noite, me deram um colchão, apenas um colchão. Eu estava numa cela de blocos e concreto, num lugar gelado e não tinha sequer um lençol pra me cobrir. Pedi um cobertor ao cabo da guarda, ele consultou o sargento e este simplesmente negou o pedido. Me senti como Dorival encarando a Guarda!
Eu tremia de frio, e só consegui pegar no sono depois de me enrolar no colchão e ser vencido pelo cansaço.
Despertei com o barulho da porta da cela se abrindo, mal tive tempo de me levantar quando tomei uma joelhada no estômago. Naquela escuridão eu não conseguia distinguir nada, via apenas alguns vultos, acho que eram 3. Dois me seguraram e um
tratou de me usar como saco de pancada. Mas o filho da puta sabia que não podia me deixar marcas, então enrolou uma toalha na mão, que de certa forma amortecia a dureza dos socos, mas não das joelhadas.
Apanhei durante uns minutos. Mas juro que pareciam horas. Os filhos da puta sabiam bem onde bater.
Me largaram no colchão, arrebentado chorei sozinho. Dormi como uma pedra. As porradas fizeram o frio passar.
Acordei com um balde de agua na cara, me esforcei para levantar e um dos guardas me ajudou, era o 504 Vieira. Tiraram o colchão da minha cela, e jogaram 2 baldes de agua no chão, para que eu não me deitasse novamente.
Um dos soldados voltou com a bandeja do desjejum, eu estava faminto, mas quando peguei a caneca de leite na mão, percebi uma escarrada flutuando no meio da nata.
Como já disse, eu havia agredido um sargento. E eles eram unidos.
Todas as minhas refeições vinham com um brinde nojento. No inicio, eu me recusei a comer, mas não tendo outra solução, depois de algum tempo eu simplesmente empurrava pro lado as cuspidas, e comia o resto.
Sem ter o que fazer na cela, eu contava e recontava aqueles blocos. 206. Da esquerda pra direita, de cima para baixo, colunas impares e depois as pares. De trás pra frente.
1, 2, 3, 4, 5, 9, 22, 45, 50, 88, 146, 200, 201, 202, 203, 204, 205, 206. Sempre 206.
Todo preso tinha o direito de uma hora de sol por dia, mas nos 40 dias em que fiquei naquela maldita cela, sai somente 3 vezes, sendo que em duas vezes fui direto pro banho, e voltei pra cela. Pois quem controlava esta regalia era adivinhem? Um sargento. E eles eram unidos. Pelo menos nas questões militares. E um reco folgado era tudo o que eles queriam pra satisfazer um pouco das suas frustações da vida.
Certa noite eu dormia e tremia de frio, quando jogaram algo pelas grades da janela. Tateei no escuro e encontrei um embrulho. Abri e não acreditei no cheiro que invadiu minha alma. Mortadela, um caprichado sanduiche de mortadela.
Até hoje aquele simples cheiro e aquele sabor estão gravados profundamente na minha memória.
A partir daquela noite eu comecei a receber alguns regalos pela janela. Se por um lado eu estava "sujo" com os sargentos, para os soldados eu havia virado um herói.
Depois que sai daquele buraco, fiquei sabendo que vários soldados se juntaram para me ajudar, não só da minha Cia, mas de todo o quartel, todos odiavam o sargento soprano Garcia e queriam ser aliados do Zorro.
Foi aberta uma sindicância para apurarem os fatos, os soldados que treinavam comigo depuseram ao meu favor, o que acabou me livrando de ser expulso do Exercito ou cumprir uma pena maior, e por ter ficado 40 dias preso, decidiram me soltar sem maiores complicações pois na semana seguinte haveria uma importante competição de tiro. Fui para o campeonato como um dos favoritos e voltei sem ao menos ser classificado para a etapa final. Eu não conseguia mais atirar como antes.
Toda vez que eu me concentrava no alvo, imediatamente vinha na minha mente aqueles
blocos......1, 2, 5, 26, 44, 100, 200, 201, 202, 206........................206. 206.206......

15 comentários:

Robson Martins disse...

Caraca Junior, ótimo post muito interessante!!!

Unknown disse...

FDP esse 3º Sargento, acho que deveria ser temporario,incopetente, mocorongo, pois é muito dificil um de carreira fazer isso,pois nojuramento diz:
" Tratar com bondade os subordinados....

Anônimo disse...

ae chegado eu sou do 4 bib e voçe se ligou que para quarteis de linha de frente eles so pegam a rapaziada das perifas de sao paulo tipo eu so do largo treze outro era do imbe outro da pedreira outro da joaniza outro artur alvim outro da brasilandia tudo mano de perifa sabe porque porque e os primeiros a irem para querra e sempreos mais pobres os boy servem nos quarteis mais suave eu fui o primeiro a receber promoçao do meu ano sai do bib revoltado injuriado e etc e tal to com voçe o maior querreiro que o 4 bib ja teve foi o capitao lamarca o resto e uma par de lixo que ta no seguro da farda viva lamarca o unico soldado brasileiro

SD840 disse...

E aí Junior, interessante sua história, servi EB em 1984 no 4º BIB, como sempre entre os militares,em todo lugar existem desqualificados, tinhamos um 3º sgt, um tal de Almeida metido a fortinho, adorava ralar (os outros), uma de suas marcas registradas era nos acordar de madrugada de cueca e fazer=nos rastejar no meio do mato, o espaço é curto mas vc sabe que tem muito +, esses individuos tem fim inglório, ainda como militar foi pego em assalto armado, não são todos que podem cantar àquela canção: "Nobre Infantaria, arma de respeito...

Anônimo disse...

Legal seu comentário. servi no 4 BIB em 1986 e dei baixa como NB em 1987 (ultima baixa). Na minha cia (3a.) tivemos várias histórias parecidas. Muito esculacho, muito graduado folgado (principalmente uns CABOS). Bom, tudo passou, hoje sinto saudades. Enfim era um garoto e para mim aquilo era um castigo, mas tudo passa. Como disse antes ficou a saudade. Boa sorte para vc !!

Cia Ap disse...

Junior,

Servi na Cia Apoio do 39 em 1983.
Teu relato me fez lembrar de alguns sargentos temporários que "alopravam" a galera e também de um primeiro sargento que foi morto por um terceiro sargento dentro do pavilhão de comando na frente do oficial de dia.
É o que eu sempre digo: OS INCOMPETENTE VESTEM FARDA PRA SE SENTIREM MAIS SEGUROS.

Anônimo disse...

Cara eu servi na segunda companhia em 1984, em 85 eu fui fazer a guarda fúnebre do Tancredo Neves, ET também era da CIAREF, também operações especiais. Esta sua historia me fez voltar ao passado grandes amigos, grandes experiências. Os sargentos sempre eram as piores raças, depois vinham os cabos, depois tenentes, e geralmente os Capitães e acima eram gente boa. Capitão Pinto era o capitão da minha companhia grande cara.
abimaelps@ig.com.br

Anônimo disse...

Nossa, pensei que só eu que me ferrei.

Po Junior, fiquei comovido, passei situação semelhante, servi no 4 BIB, em 1989, desci na G2 mais do que a propria guarda, na época meu Pai teve um derrame, e como estava de serviço, não me avisaram, fiquei Puto e armado com meu FAP, não deixavam eu usar o fal, ja era negativo, enquadrei o oficial de dia, Ten Geovani, que todos temiam, deveria ter matado ele, mas o Capitão Rogerio foi avisado e era muito gente boa, pegou meu armamamento, e me deixou ficar com meu Pai até que ele ficasse bem de saude, assim que voltei, cumpri 72 dias de G2. mas comecei com 7 dias e toda hora do pato eu estava lá, até que me transferiram para 11 brigada em campinas, e depois voltei para trabalhar na CS3, até minha baixa.

Julio Cezar de Camargo disse...

Voce que contou o caso do seu pai,enquadrou o ten Gavião? o cpt Rogerio era da 1 Cia certo? eu tambem fui da 1 em 89.Valeu.

Jose Antonio Brito disse...

Junior,
Muito boa essa tua estória...faz a gente voltar no tempo, servi no 4º BIB, Cia Serv/S3 em 1983, passei por uma situação parecida, bem mais leve que a tua...você é um excelente contador de estórias...deveria postar mais estórias que lembrar, ou até falar com teus antigos companheiros e montar uma página com outras estórias de outras Militares, que tem muitas estórias para contar e não sabem como, nem para quem e nem aonde fazer isso...show de bola...pense no que falei...se precisar de ajuda fale comigo...é um prazer e ao mesmo um passatempo, ouvir o que os amigos tem para contar e passar para os outros amigos e talvez até aproximar gente que não se vê há muito tempo, pense nisso.
Um grande abraço.

Anônimo disse...

Cara eu servi em 86 na terceira no quarto Bib sd 1330 raimundo , sei o que vc passou porque passei por isso também , um abraço.

Anônimo disse...

Junior, como voce e um companheiro no anonimato também servi em 84 no BIB pela 3a.cia e como o amigo falou o Almeida era um lixo, sem falar no cretino do ten. skuplic outro também. Mas muito legal ver vc contar o que viveu fazendo nos trazer aqueles momentos de tratamento animal e muita ralação. Valeu











































































Anônimo disse...

Junior, como voce e um companheiro no anonimato também servi em 84 no BIB pela 3a.cia e como o amigo falou o Almeida era um lixo, sem falar no cretino do ten. skuplic outro também. Mas muito legal ver vc contar o que viveu fazendo nos trazer aqueles momentos de tratamento animal e muita ralação. Valeu











































































Marcus disse...

Putz, que relato cara, servi no 39 em 1995, na 1ª CIA. Virei muito o zoio na Guarda Norte, certa vez um soldado, o Frade, sempre dava alteração, vivia preso na Guarda Norte, mas todos nós soldados sempre o ajudava, com comida ou com um cobertor...abs

adilson disse...

BIB-1986 3CIA SD ADILSON,O PRIMEIRO DA CHAMADA.ABRAÇO A TODOS QUE SERVIRAM COMIGO!